Quinta, 26 Dezembro 2024

Depressão Alastrante e a Cronificação da Migrânea: Boas e Más Notícias

O problema da possível relação entre “depressão alastrante” (DA) e algumas formas de patologia cerebral estende-se por 4 décadas.

Desde sua descoberta e descrição pelo cientista brasileiro A. A. P. Leão (1944), o fenômeno foi concebido como um dos fatores implicados na epilepsia, tal concepção sendo fundamentada na similaridade entre a forma de propagação da DA e a propagação da cizura. Em artigo subseqüente (Leão 1947), ele relatou ter encontrado evidências de que uma isquemia súbita no cérebro produzia transformações na voltagem extraceclular que correspondiam, intimamente, às transformações de voltagem observadas em episódios de DA. Esta última especulação deu nascimento à crença de que o fenômeno da DA seria produzido pela ocorrência de breves episódios isquêmicos ou, também, por falhas energéticas temporárias no cérebro (van Harrerveld & Stamm 1952), contudo, tal noção teve de ser, mais tarde, abandonada.
Descobriu-se que o fluxo sangüíneo e o aporte de oxigênio, durante ocorrência de DA normóxida, longe de serem reduzidos eram, ao contrário, incrementados (ver revisão em Somjen 2004), ou seja, o processo de DA parecia possuir um caráter funcional, de proteção do tecido cerebral. Com efeito, um considerável número de trabalhos derivados de estudos cuidadosos do fenômeno de DA, apontaram efeitos benéficos produzidos por este processo, ou, ao menos, não encontravam nenhum tipo de conseqüência danosa ao tecido cerebral.
Em consonância com este ponto de vista modificado, o grupo de J. Bureš (Bureš et al. 1984), numa série de trabalhos acerca do comportamento de ratos, utilizou o fenômeno da DA, que os investigadores induziam nos sujeitos experimentais, como um recurso do protocolo experimental. Concluindo, no final, que a DA não produzia nenhum efeito aversivo nos ratos em estudo (Koroleva & Bureš 1993). Em linha com tais descobertas, Hansen e colegas (Nerdergaard & Hansen 1998) já haviam relatado que, uma vez que se trate de cérebros de seres humanos adultos, cujo fluxo sangüíneo é normal, bem como propriamente oxigenado, a DA pode ser provocada um grande número de vezes sem que nenhum dano mais óbvio seja produzido.
De outro lado, estão aqueles cientistas que defendem tese oposta àquela exposta acima, vendo no fenômeno de DA efeitos danosos sutis ao tecido cerebral. É assim que alguns estudiosos, como por exemplo, Somjen e colaboradores, apresentaram evidências de lesões neuronais causadas pela ocorrência da DA (Somjen 2001, Jing et al. 1991). Em seus estudos sobre a DA, estes cientistas descobriram que, caso os neurônios envolvidos em episódios de DA sejam forçados a permanecerem em estado de despolarização por um intervalo de tempo muito longo, acabam por colapsar, vítimas do incremento intenso de ions cálcio no espaço intracelular (Harris et al. 1981, Herrera & Somjen 1993a, 1993b). A capacidade de se recuperar depois de submetido a um estado de despolarização longo poderia, segundo a sugestão de certos cientistas, ser utilizada como critério de diferenciação entre o tecido cerebral maduro e o tecido imaturo, isto é, a diferença crucial entre as duas classes de tecido cerebral residindo na capacidade de tolerância a períodos de despolarização e hiper-calcemia ? a primeira, capaz de resistir a períodos muito mais longos do que a última.
Além do mais, em reforço a este ponto de vista, nenhuma dúvida resta de que a DA encontra-se presente em casos de migrânea, concussão e trauma cerebral, hipóxia e, possivelmente, algumas formas de epilepsia (Gorji 2001). Em trabalho mais recente, Bolay e colaboradores relataram que, durante
a DA, certos compostos liberados no espaço intersticial ativam aferentes trigeminais causando reações inflamatórias, edema e extravazamento proteico no interior, além das imediações, de vasos sangüíneos da dura mater (Bolay et al. 2002, Kunkler et al. 2004). A resposta trigeminal, produzindo dor intensa, constituindo-se como o processo neurológico proximal subjacente ao fenômeno da migrânea.
Não estaríamos exagerando, por certo, quando frente a tal estado de coisas nos sentíssemos invadir por um sentimento de desconforto, reposta perfeitamente natural ao sermos confrontados por situações científicas conflitivas: afinal, a DA traz benefícios ou danos para o tecido cerebral? Numa primeira aproximação, a resposta a esta pergunta pareceria estar já disponível a partir dos dados gerados nas investigações acima resumidas, e a contradição entre estas duas concepções sobre a DA revelar-se-ia mais aparente do que real. Com efeito, tão logo introduzíssemos o conceito de “intervalo temporal” na trama explicativa, o problema estaria solucionado: a resistência neuronal ao processo de DA, em tecidos cerebrais sob condições metabólicas e de oxigenação normalizadas, depende, essencialmente, do período de tempo em que o mesmo foi submetido ao fenômeno. Para aqueles neurônios inicialmente “sadios”, um certo limiar temporal é estabelecido, caso o processo de DA não ultrapasse estes limites temporais, então, o fenômeno poderia ser considerado funcional, e, uma vez que levemos em conta sua capacidade de produzir incremento metabólico e de oxigenação, até mesmo neuroprotetivo (Kawahara et al. 1995). Alternativamente, no caso em que o limiar temporal fosse ultrapassado, a DA teria efeitos destrutivos para o tecido cerebral, responsável pela morte de células naquelas regiões do cérebro por ela atingidas.
Mas, como é comum acontecer, a realidade é mais complexa do que nos conviria, fazendo com que a possível compreensão do fenômeno de DA dificilmente possa ser acomodada ao esquema explicativo esboçado acima. Em artigo recente, publicado no Journal of Neurophysiology, Pompers e colaboradores demonstraram, convincentemente, que culturas celulares metabolicamente funcionais e normalmente oxigenadas, mas provenientes de tecido cerebral imaturo, quando submetidas a episódios curtos, mas repetidos, de DA, apresentavam morte neuronal, além de morte de células gliais (Pompert et al. 2006). Além disto, estes autores também apresentaram evidência de que, mesmo tratando-se de tecido cerebral metabolicamente competente, um outro fenômeno relacionado à DA, as denominadas “Despolarizações Periinfartais” (DPI), produziram lesões neuronais. Tais DPIs são análogas às ondas produzidas na DA, emanando, contudo, dos limites do infarto cortical causado por isquemia ou injúria traumática. Dadas as condições neuronais onde o fluxo sangüíneo não se acha completamente obstruído, mas que encontra-se, transientemente, reduzido, as DPIs podem causar o crescimento do processo de infarto, levando ao colapso final do tecido (Harriset al. 1981, Hosman 1971, Gorji 2001, Strong & Dardis 2005). Algo que, segundo os autores, poderia também ser esperado no caso da DA.
Caso estes achados provenientes dos trabalhos do grupo de Pompers em culturas celulares, isto é, in vitro, venham a se confirmar também em cérebros juvenis intactos (in vivo), estaríamos diante de descoberta de enorme relevância clínica. O fenômeno da DA estaria, desta forma, implicado na origem de diversas neuropatologias infantis, a migrânea entre elas. Para esta última, um fator de preocupação suplementar relaciona-se ao aspecto da cronificação da moléstia. Os eventos de DA presentes na infância provocaria danos irreversíveis em regiões cerebrais específicas, disparando aqueles processos de resposta trigeminais, com consequente sintomatologia migranosa. Com a ocorrência de novos episódios de DA, ao longo do desenvolvimento, os processos que se constituem em causas proximais da migrânea seriam recorrentemente ativados, produzindo novas ocorrências de migrânea. Tal condição, constantemente renovada e gradativamente amplificada, se estenderia até a idade adulta e pela vida toda do indivíduo.
Seja como for, o fenômeno da DA, tanto por seus aspectos básicos como por suas implicações clínicas, merece ser mais amplamente investigado.

 

Referências

  • Bolay H, Reuter U, Dunn AK, Huang Z, Boas DA, and Moskowitz MA. Intrinsic brain activity triggers trigeminal meningeal afferents in a migraine model. Nat Med 8: 136–142, 2002.
  • Bureš J, Burešova´ O, and Krivanek O. The meaning and significance of Leao’s spreading depression. An Acad Bras Cienc 56: 385–400, 1984.
  • Gorji A. Spreading depression: a review of the clinical relevance. Brain Res Rev 38: 33–60, 2001.
  • Harris RJ, Symon L, Branston NM, and Bayhan M. Changes in extracellular calcium activity in cerebral ischemia. J Cereb Blood Flow Metab 1:203–209, 1981.
  • Herreras O and Somjen GG. Effects of prolonged elevation of potassium in hippocampus of anesthetized rats. Brain Res 617: 194–203, 1993a.
  • Herreras O and Somjen GG. Propagation of spreading depression among dendrites and somata of the same cell population. Brain Res 610: 276–282, 1993b.
  • Hossman K-A. Cortical steady potential, impedance and excitability changes during and after total ischemia of cat brain. Exp Neurol 32: 163–175, 1971.
  • Jing J, Aitken PG, and Somjen GG. Lasting neuron depression induced by high potassium and its prevention by low calcium and NMDA receptor blockade. Brain Res 557: 177–183, 1991.
  • Kawahara N, Ruetzler CA, and Klatzo I. Protective effect of spreading depression against neuronal damage following cardiac arrest cerebral ischemia. Neurol Res 17: 9–16, 1995.
  • Koroleva VI and Bures? J. Rats do not experience cortical or hippocampal spreading depression as aversive. Neurosci Lett 149: 153–156, 1993.
  • Kunkler PE, Hulse RE, and Kraig RP. Multiplexed cytokine protein expression profiles from spreading depression in hippocampal organotypic cultures. J Cereb Blood Flow Metab 24: 829–839, 2004.
  • Leão AAP. Spreading depression of activity in the cerebral cortex. J Neurophysiol 7: 359–390, 1944.
  • Leão AAP. Further observations on the spreading depression of activity in the cerebral cortex. J Neurophysiol 10: 409–414, 1947.
  • Nedergaard M and Hansen AJ. Spreading depression is not associated with neuronal injury in the normal brain. Brain Res 449: 395–398, 1988.

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